segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Capitulo 5

Giovanne, o Sapateiro.

Se Raul tinha verdadeiramente um amigo esse era Giovanni, o Sapateiro. colegas de xadrez e de debates históricos. O Sapateiro italiano era figura muito conhecida em Macapá. Polemico e controverso, era tido como radical demais. Porem, todos respeitavam sua intelectualidade indiscutível. Algumas figuras levavam-lhes sapatos só como pretexto para tirar algumas duvida filosóficas com o velho sapateiro.
Raul o conhecia desde a infância, onde já escutava suas teorias conspiratórias entre uma martelada e outra no velho e surrado sapato de Seu Albertino, pai de Raul. Que sempre falava: “Não dê muita atenção a esse sapateiro filho, é Anarquista”.
Na adolescência, o velho sapateiro costurava sua bola de basquete de couro e em troca cobrava uma partida de xadrez e um livro emprestado. Missão duplamente difícil era ganhar do velho sapateiro e arrumar um livro que ainda não tivesse lido o velho Carcamano.
Ultimamente sua pequena sapataria funcionava muito mais pela administração de sua única filha do que diretamente pelo trabalho do velho amigo. Antonella foi fruto do único casamento que o velho Giovanne conseguiu em sua vida. Teve o desprazer de perder sua mulher no parto que lhe deu uma filha invés de um varão como sonhara. Duplo desgosto. Quando indagado porque não casara novamente sempre respondia: “Pra quê? Pra morte me levar de novo a mulher?” e continuava resmungando. “Hoje não quero mais nem saber de cachorro, que dirá mulher”. Raul sabia que por trás daquele mau humor ressentia um viúvo muito apaixonado pela esposa falecida. Um velho cabeça-dura que não aceitava aquilo que era incapaz de entender.
- Bom dia Cesar. Disse Raul entrando pelas portas da Sapataria “Tibre”. Que estavam abertas, pois domingo era dia de faxina na sapataria dos Veronesis.
-Bom dia querido Raulzito. Respondeu Antonella com olhos sempre atentos aos movimentos de Raul. Que lhe fascinavam pelo porte e jeitinho de “menino manhoso” que tinha. Raul não era um moço para capa de revista, mas tinha um charme infalível que emanava de sua postura máscula e voz quase rouca.
- O velho Carcamano já acordou? Raul só chamava Giovanne assim quando estava a sóis com Antonella. Raul se assustava com a beleza dos olhos verdes da moça. Grandes e cristalinos prendiam todos os olhos que lhes fintassem. Um abismo de hipnose que lhe convidava a perdição.
- Se papa já acordou? Já sim, tu sabes que é ele quem acorda o galo todo dia de manhã. Brincou a italianinha tentando disfarçar certa tristeza que lhe pesava as sobrancelhas.
- Já diz o ditado: “quem dorme com as galinhas acorda com os galos”. Concordou Raul.
- Dizem também que o galo quando fica velho põem um ovo antes de morrer. O famoso “Ovo de Galo”. Disse a moça, colocando a mão direita na frente da carnuda boca, acanhada com as palavras que acabara de dizer.
- hum... É verdade, eles sempre fazem isso depois de soltar a franga! Disparou Raul.
Os dois riram e se aproximaram naturalmente e quase se tocando pararam e ficaram meio sem jeito. Sabiam que precisavam evitar o toque. Talvez quem pudesse se controlar tendo em sua pele o toque de quem deseja? O cobiçado corpo tantas vezes sonhado. Entregue ao teu por alguns segundos era o bastante para iniciar a avalanche que esperava por um leve toque para se desencadear.
Ela foi a primeira a se controlar:
-Ta La atrás teimando com o rádio enquanto toma café. Respondeu a jovem moça tentando desconstruir o ensaio de querer pular para os braços daquele homem maravilhoso.
Raul e Antonella flertavam sempre, mas nenhum tinha a coragem de romper a barreira invisível que os separavam. A presença de Giovanni era sempre muito forte, mesmo quando estava ausente os apaixonados não ousavam macular a confiança que o velho depositava neles. Raul não podia ser tão vil com seu mais precioso amigo. A morte teria que lhe levar o amigo para que a vida lhe desse aquela Vênus romana como esposa e amante.
- Não sei o que é mais duro, se a cabeça branca de seu pai ou a massa de pizza que ele prepara. Disse Raul se dirigindo à cozinha.
- rsrsrrs. Cesarina se derreteu.
Chegando á cozinha, Raul se deparou com o velho sapateiro distraído olhando pro vazio enquanto mastigava um pedaço de pão com a dentadura e ruminava o rádio com os ouvidos.
- Ora, a que devo uma visita tão cedo assim meu jovem discípulo?
Giovanni chamava-o assim, pois Raul insistia em chamá-lo de Mestre em virtude das aulas de Xadrez.
-Teve pesadelos ou dormiu com mulher feia? Disse Giovanni rindo de seu sarcasmo.
- Puro interesse, Mestre. Quero filar seu café. Disse Raul já puxando a cadeira e sentando como fazia inúmeras vezes após longos anos de amizade.
- Hum... Se te conheço bem teu interesse é outro. Queres saber alguma coisa ou pedir algo emprestado. Podes perguntar ou pedir filho, se souber te respondo, se tiver te empresto. Disse o velho sapateiro colocando café no leite que Raul já havia posto num copo.
- Tudo bem, o senhor me venceu. Onde você guarda o queijo, embaixo do colchão? Disse Raul tentando ficar serio enquanto cortava um pão “Careca” ao meio perante os olhos cirúrgicos do velho amigo.
- Guardo dentro da bota enfiado na meia. Ta servido? Respondeu o Sapateiro com um ar verdadeiramente sério e interessado.
- Não, obrigado! Meu mau hálito já me basta. Respondeu Raul pousando uma gota de sorriso no canto da boca logo disfarçada por uma dentada da envergadura de sua fome.
Raul era magro de ruim como se diz em Macapá. “come mais que impinge!” dizia o velho carcamano para se referir ao apetite de seu discípulo. “o tanto que esse menino rema colher do prato para a boca dava para ir e voltar a Belém de canoa”. Tirava sarro o velho italiano que sempre lhe serviu sem reclamar. “Raul não vale nada, mas é um bom moço!”. Dizia o pai a Antonella. Giovanne via em Raul o filho que gostaria ter tido no lugar de uma menina frágil como a filha.
Raul o admirava e respeitava-lhe muito ou pelo menos o bastante para não bulir com sua única filha. Antonella era uma moça muito bela. De pele muito branca e de cabelos negríssimos e com um volume em harmonia com seus ombros e seios. Carregava nas órbitas duas pedras de jade que refletiam um verde sedutor quando de frente ao sol. Corpo esguio e bem torneado era uma beleza de italiana. Mulher dos sonhos de muitos pretendentes em Macapá. Mas o corpo puro da moça só se queimaria em uma única fogueira, a de “Raulzito”.
- O que o senhor sabe acerca das “Sandálias de Hermes”? Finalmente perguntou Raul.
- Tudo, absolutamente tudo! Respondeu de boca cheia o velho sábio enquanto mastigava o bico do pão.
Então os olhos de Raul brilharam e logo apagaram quando Giovanne completou a frase após engolir a massa:
- Elas não existem, e isso é absolutamente tudo que se precisa saber sobre elas.
-Mas e se elas existissem, quais poderes teriam? Insistiu Raul. Sabendo que além de existirem de fato, Raul ainda estava calçado com elas por baixo das meias e do tênis.
- poder nenhum!
- Como não?
- como algo que não existe pode ter algum poder?
Raul olhou meio desconfiado das palavras do velho. O velhaco estava lhe testando.
- O tanto de poder que as pessoas lhe atribuírem.
- É verdade filho. Ninguém nasce poderoso. O poder é conquistado por virtur ou pela força. Somente um homem veio ao mundo poderoso de nascimento. Sabe quem?
- Cristo.
- Ainda assim, Jesus passou fome no deserto enquanto lhe bastava colher uma rocha e transformá-la em Hamburg antes mesmo de Hamburgo existir. Esse é o contraste do poder divino e o mundano. Na Terra as pessoas por não nascerem poderosas passam a conquistar o poder e o usam em beneficio próprio. Deus Pai, Filho e Espírito por serem a própria onipotência acabam usando suas colossais forças em beneficio do “outro”.
-E então...
- Então é por isso que Hermes sempre andou descalço ora bolas. Concluiu o debate o velho sapateiro agora dando mais atenção a uma noticia do velho radio Motorola.
Raul então percebeu que era inútil tentar mais alguma coisa. Definitivamente não seria Giovanni a lhe ensinar os poderes daquelas maravilhosas sandálias. Raul agora precisava de um novo Mestre, um novo guia. Alguém que lhe ensinasse os mistérios desconhecidos de Métis. Somente uma criatura estava qualificada a ocupar essa função. O guia de túnica azul misteriosa. Mas qual é o nome dele? Pensou Raul.
- “Sandálias de Hermes” chiou o sapateiro. Quanta tolice pela manha logo cedo?
- um pouco de tolice no café da manha não faz mal a ninguém. Disse Raul descontraído, mas intrigado com o semblante de Giovanni que agora, de repente, deixou transparecer a mesma tristeza que percebeu nas sobrancelhas de Antonella ainda há pouco.
- o que incomoda o amigo? Perguntou Raul.
- Coisas de homem você não entenderia. Respondeu secamente o carcamano.
Raul sabia que a grosseria não colocava em duvida sua masculinidade, mas sim sua maturidade. Giovanni às vezes gostava de deixar Raul irritado tratando-o como criança.
- Tudo bem, mas deixe-me adivinhar. O problema é Antonela, não é?
O sapateiro olhou para Raul em um ínfimo de segundo e logo virou o rosto. Com o olhar perdido confessou com o amigo.
- Ela acorda no meio da madrugada sobressaltada e chorando a pobre menina. Quando corro em seu quarto e a abraço ela se acalma, mas nunca me diz o que é. Com o que sonhou ou o que lhe atormenta. Mas posso jurar que são pesadelos com a mãe. Desde criança ela se sente culpada pela mãe ter morrido no parto.
Raul sentiu um grande peso lhe tomar o peito e logo também estava com uma tristeza pesando suas sobrancelhas.
- Mas não foi culpa dela.
- Todo mundo sabe, menos ela. Lamentou o pai.
- Deixe-me conversar com ela.
- nunca! Ela não me perdoaria se soubesse que lhe contei. Ela lhe tem com muita estima. Sempre tratei vocês dois como filhos e ela te adotou como irmão.
Raul ficou meio sem jeito. Por saber que o sentimento que embalava os dois era muito diferente de fraternidade ou irmandade. Mas, mesmo assim, pegou a deixa:
- Pronto, sou da família. Ela não se ofenderá.
- Tu que pensa. Ela me advertiu com todas as letras: “Papa, nunca comente nada disso com Raulzito ou não lhe perdoarei nunca, ouviu? Jamais!”. E você sabe como são as mulheres, teimosas e rancorosas.
- Mas por quê?
- Não quer que seu olhar mude em relação a ela. Tem receio que você passe a sentir pena dela. Coisas do complexo.
- A última coisa que sentiria por Antonella seria pena.
- É, mas tudo bem. Deixe quieto e não comente nada com ela. Tudo bem?
- ta certo. Não falarei nada. Mas agora deixe-me ir senão acabarei ficando para o almoço.
Raul evitou olhar diretamente para os olhos verdes de sua querida paixão. Resumindo-se a um simples tchau de passagem. Teve receio que seus olhos o denunciasse, ela provavelmente perceberia sua preocupação e brigaria com o pai. Mas Raul já estava decidido. Usaria o anel para salvar Antonella de seus pesadelos. E seria hoje mesmo.
-O que o Raulzito queria papa? Mal se despediu de mim. Reclamou Antonela pela inesperada falta de atenção de Raul.
- Queria saber acerca das Sandálias de Hermes.
- Sandálias de quem? Pensou se tratar de algum serviço da sapataria.
- Nada filha. bobagem.
Giovanni se sentiu leviano com o amigo, conhecia bem a história das Sandálias mágicas de Hermes. Já ate vira com seus próprios olhos a Estatua de Hermes Amarrando as Sandálias quando visitou o Museu do Louvre em Paris. Em viagem de Lua de Mel, presente de casamento do Sogro a filha. Mas preferiu se fazer de ignorante. Pois Hermes lhe lembrava um passado que queria a todo custo esquecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário